Opinião

Compreendendo o sistema de protecção social em Moçambique num contexto de choques recorrentes – perspectivas do trabalho de campo

Um inquiridor do Vulnerable Lives Survey (VLS) a percorrer um dos bairros de Monapo com um guia local, província de Nampula (Foto: IGM)

Programas de protecção social eficazes que satisfaçam as necessidades locais podem melhorar significativamente o bem-estar e quebrar o ciclo de pobreza estructural entre os pobres e os vulneráveis. Medir a sua eficácia e compreender o seu impacto é crucial para os decisores políticos envolvidos em sua concepção. O inquérito Vulnerable Lives Survey ​​(VLS), implementado em Moçambique no âmbito do programa Crescimento Inclusivo em Moçambique (IGM), visa avaliar a eficácia do principal regime de pensões sociais não contributivas do país. Neste blog, partilhamos conhecimentos e experiências dos nossos três meses de trabalho de campo nas províncias de Maputo, Nampula, Sofala e Zambézia.

Moçambique ocupa o 185º lugar entre os 191 países no Índice de Desenvolvimento Humano de 2022. É um dos 10 países mais afectados por catástrofes naturais em todo o mundo e sofre de conflitos internos contínuos no Centro e no Norte. O combate à pobreza extrema nestes contextos vulneráveis ​​é um desafio. A evidência internacional sugere que programas de subsídios em dinheiro bem concebidos podem contribuir de uma maneira eficaz para a redução da pobreza e da vulnerabilidade estructural.

Embora o orçamento para a protecção social em Moçambique se encontre em expansão, continua pequeno relativamente às necessidades existentes e há um crescente interesse por parte do governo moçambicano e dos parceiros internacionais em aumentar a sua capacidade de cobertura nacional. Actualmente, o maior programa de assistência social é o Programa Subsídio Social Básico (PSSB), que começou em 1990 com o intuito de ajudar grupos vulneráveis ​​específicos, incluindo idosos, pessoas com deficiência ou doenças crónicas, crianças e órfãos. O PSSB-idosos, que é dirigido a indivíduos com 60 anos ou mais, é a maior componente deste programa e consiste num pagamento  mensal de cerca de MZN 540 (USD 8,45) aos beneficiários selecionados.

Até à data, a evidência empírica sobre a eficácia do PSSB-idosos é limitada.  Neste contexto, o projecto VLS pretende preencher esta lacuna através de um exercício de recolha de dados que permitirá comparar beneficiários com os seus vizinhos (comparáveis) não elegíveis a nível de condições socioeconómicas e da capacidade de recuperação depois de choques climáticos ou de situações de conflito ao longo dos anos. Este estudo irá gerar evidências sobre o impacto de medidas de protecção social para o bem-estar e resiliência das famílias beneficiárias que ajudarão a informar o desenho e a conceção de medidas de protecção social, em particular no que diz respeito à definição dos grupos-alvo, frequência e o montante dos pagamentos.

Fotografia aérea de Monapo, Província de Nampula (Foto: IGM)

A primeira ronda do inquérito do projecto VLS, realizada entre Maio e Agosto de 2024, incluiu 2.400 agregados familiares das províncias de Nampula, Zambézia, Sofala e Maputo – 1.000 idosos beneficiários do PSSB e 1.400 não beneficiários (grupo de comparação). Uma segunda ronda está prevista para o final de 2024.

Desafios da recolha de dados entre populações vulneráveis

A recolha de dados entre comunidades vulneráveis ​​exige considerações éticas cuidadosas,  nomeadamente em relação à privacidade e à confidencialidade dos participantes. Garantir a transparência e obter o consentimento informado, especialmente dos participantes mais idosos e mais isolados, exige inquiridores experientes e com habilidade em falar as línguas locais.

O caracter sensível das questões relacionadas com a história socioeconómica, ou o impacto dos choques climáticos e de violência exige entrevistadores bem treinados e preparados para lidar com potenciais reações traumáticas com sensibilidade.

As equipas de recolha de dados devem cumprir os mais elevados padrões éticos para promover a confiança e o respeito, que são cruciais para a recolha de dados fiáveis.

A equipa de recolha de dados caminha até às residências dos beneficiários no bairro de Monapo,  Província de Nampula (Foto: IGM)

Dinâmica de recolha de dados em campo

As comunidades vulneráveis ​​residem frequentemente longe dos centros urbanos, com acesso limitado às infraestruturas públicas e aos serviços sociais. Algumas áreas, especialmente nas províncias de Sofala e Zambézia, perto do rio Zambeze, são de difícil acesso e podem envolver encontros com animais selvagens perigosos, como crocodilos e elefantes. A equipa de recolha de dados encontrou por vezes beneficiários que viviam em zonas remotas acessíveis apenas a pé – ou de barco, como ilhas no meio do rio Zambeze. Isto exigiu vários ajustes no plano de recolha de dados. Verificámos também que alguns beneficiários listados no programa tinham falecido, em alguns casos  há mais de dois anos.

A equipa tinha de começar o dia bem cedo para percorrer longas distâncias com difíceis acessos para chegar às comunidades  e finalizar o trabalho antes do anoitecer. Tinham de confiar em guias locais para encontrar a localização exacta dos agregados familiares seleccionados   e normalmente apenas uma ou duas pessoas em cada bairro conheciam a área suficientemente bem para ajudar na localização destes locais remotos. O que pode ser um dos motivos pelos quais a lista de beneficiários não é actualizada com muita frequência.

Os atrasos nos pagamentos do PSSB-idosos também representaram um grande desafio ao trabalho da equipa de campo, que teve de gerir as expectativas dos beneficiários de forma clara e sensível durante todo o processo de recolha de dados.

VLS produzindo evidências críticas para a formulação de políticas em Moçambique

O projecto VLS fornecerá dados críticos para a concepção de políticas de assistência social eficazes em Moçambique. Embora as evidências internacionais mostrem que os programas de protecção social baseados em subvenções de dinheiro podem ser altamente eficazes, os detalhes da implementação destes programas são importantes. Em particular, a regularidade e a consistência dos pagamentos são cruciais; se os pagamentos forem imprevisíveis, podem não proporcionar segurança financeira necessária para gerar impactos positivos e sustentáveis na vida das pessoas abrangidas. Acreditamos que a recolha e análise de dados em curso fornecerá mais evidências para melhorar a eficácia do programa PSSB para os idosos, potencialmente tornando-o numa ferramenta importante para aliviar a pobreza em Moçambique.

 

As opiniões expressas neste artigo são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as opiniões dos parceiros ou doadores do programa IGM. 

Sara Almeida é doutorada em Economia e investigadora honorária no Imperial College London. Actualmente trabalha como investigadora de pós-doutoramento tendo como principais áreas de interesse a protecção social e a saúde. No VLS, trabalhou em monitoria de qualidade de dados no campo nas províncias de Maputo e Nampula.

Amadeu das Neves é licenciado em Gestão e Estudos Culturais pelo Instituto Superior de Artes e Cultura de Moçambique. Trabalha como Consultor Independente para Estudos Quantitativos e Qualitativos nas áreas de políticas sociais. No VLS trabalhou como Supervisor de Trabalho de Campo nas províncias de Nampula, Zambézia e Sofala.